“Cultura é regra, arte é exceção.”
Iniciemos a reflexão a partir desta célebre afirmação de Jean-Luc Godard, presente em seu curta-metragem Je vous salue, Sarajevo. Em pouco mais de dois minutos, o cineasta desenvolve uma análise dialética sobre a arte e a cultura, tomando como ponto de partida um único fotograma. Toda a estrutura do filme — desde os enquadramentos, os movimentos de câmera, a escolha da imagem até a construção de sua fala — compõe essa reflexão crítica. É pertinente exemplificar tal abordagem para contextualizar o debate que se segue.
Este texto, que assume características de uma carta aberta, busca questionar certas dinâmicas de discussão, especialmente aquelas em que os mais severos críticos não reconhecem a própria inserção: as redes sociais.
Observa-se atualmente um fenômeno curioso: uma massa crescente de indivíduos tem se dedicado, com notável entusiasmo, a abordar temas relacionados às artes no ambiente virtual. Multiplicam-se discursos que exaltam a importância do debate, mesmo diante das divergências de gosto. Afinal, não se pode exigir que todos apreciem dois minutos de uma reflexão sobre uma imagem estática, pois lidamos com sujeitos que possuem gostos, por natureza, subjetivos. No entanto, há uma clara performance envolvida nesses espaços, que dita o tom do debate artístico, polarizando-o entre o “bem” e o “mal” do progressismo e, sobretudo, posicionando o contemporâneo como sinônimo de decadência estética atribuída à esquerda.
Ao utilizar o termo “performance”, afasto-me de um discurso puramente baseado no gosto individual. O ambiente das redes sociais é, por excelência, o palco dessa encenação: caracteres limitados, algoritmos que favorecem publicações de ódio e, principalmente, a proliferação de slogans de gosto. Por essa razão, retomo a frase de Godard como eixo reflexivo: “Cultura é regra, arte é exceção.” A pergunta que fica é: quem realmente está interessado em sustentar a exceção hoje?
Quando me refiro à dinâmica das redes sociais, é importante destacar que o X (antigo Twitter) é, possivelmente, o ambiente onde esse tipo de performance e comportamento se manifesta de maneira mais intensa. As limitações de caracteres e a ênfase nas frases de efeito contribuem para uma confusão generalizada entre o que deveria ser uma análise crítica aprofundada e o que se reduz a meras expressões de gosto momentâneo. Há uma dificuldade em reconhecer que tais espaços não são fóruns especializados em crítica cinematográfica, mas, antes, plataformas sociais que funcionam sob a lógica do engajamento rápido. Por isso, afirmações como a própria frase de Godard acabam sendo esvaziadas de seu significado original, transformando-se em slogans genéricos, comparáveis a estampas de camisetas vendidas em grandes varejistas, como as famosas peças com a inscrição “Directed by...”.
Outro exemplo emblemático dessa distorção é o próprio Letterboxd. Embora a plataforma tenha sido concebida como uma rede social voltada para o compartilhamento de opiniões sobre cinema, muitos a tratam como se fosse um espaço legítimo de crítica especializada. Esquecem-se, no entanto, de que a maior parte de seus usuários a utiliza exatamente como o que ela é: uma rede social. Até mesmo as referências que muitos desses indivíduos ostentam como pilares de sua formação crítica são, em grande medida, moldadas pelas dinâmicas próprias dessas plataformas.
Mais grave, porém, é perceber como o comportamento desses cinéfilos críticos, supostamente progressistas, dialoga, na forma, com a retórica da extrema direita nas redes sociais. Ambos os grupos operam pela repetição de chavões, pela simplificação de pautas complexas em slogans facilmente compartilháveis e, sobretudo, pela imposição de uma lógica de constrangimento ao outro. Em lugar do debate, opta-se por criar um ambiente de patrulhamento discursivo, onde qualquer tentativa de exceção — qualquer desvio da norma estética do momento — é rapidamente colocada sob suspeita. A máxima de Godard, mais uma vez, serve de alerta: quando a exceção vira regra, tudo o que sobra é mais uma forma de cultura normatizada.
Diversas vezes, usuários anônimos publicam comentários simplistas, por vezes até desprovidos de qualquer base argumentativa. Contudo, será que destacar tais falas como ataques pessoais é o caminho mais construtivo? É realmente necessário deter profundo conhecimento artístico para afirmar se gostou ou não de uma obra?
A intelectualização da arte, embora idealizada como meta por muitos, não é acessível a todos, seja por limitações materiais ou pelas próprias barreiras culturais que impedem o contato com diferentes formas artísticas. É verdade que vivemos uma época de maior facilidade de acesso, mas a distribuição e o despertar do interesse ainda são fatores discrepantes. Essas questões caminham lado a lado ou estão separadas por um abismo que torna mais fácil apontar o erro alheio do que promover um debate efetivo sobre tais problemáticas.
Essas discussões não são recentes. Sempre estiveram presentes, ainda que apenas agora tenham ganhado maior visibilidade. Entretanto, raramente ultrapassam a superficialidade.
A performance crítica baseada em gostos e referências, sejam elas de natureza contestatória ou não, é quase inevitável. Afinal, os sujeitos são, por definição, contraditórios. Reduzir toda a complexidade das relações artísticas a uma lógica binária entre certo e errado é uma simplificação perigosa. Muitos enxergam na performance neoliberal o grande problema, criticando a predisposição de certos grupos a elogiar qualquer obra que minimamente dialogue com pautas progressistas. Contudo, é preciso ressaltar: trata-se de uma performance. Uma encenação que impulsiona engajamentos e fortalece a presença social de determinadas figuras. Em muitos casos, os próprios agentes desse comportamento gostaram genuinamente das obras criticadas. Em outros, trata-se apenas de mais um indivíduo em busca de visibilidade. E a pergunta permanece: vale a pena transformar tais manifestações em ataques pessoais ou devemos buscar formas mais maduras de fomentar o chamado “verdadeiro” debate artístico?
Esse fenômeno, embora intensificado pelas redes sociais, não é novo. Mais do que uma simples consequência da facilidade de acesso a referências, trata-se de um espaço que reafirma, de maneira estrutural, uma lógica profundamente masculinista. Muitos dos “debates” que circulam nesses ambientes não passam de disputas de ego, conduzidas majoritariamente por homens que interagem apenas entre si, recebem validação exclusivamente masculina e constroem um repertório de referências igualmente masculinizado. Falta, portanto, uma autocrítica consistente acerca dessas práticas.
Ao abordar esse ambiente, é necessário também evidenciar como ele se configura como um espaço predominantemente masculinista. Essa característica não se revela apenas nas referências estéticas e intelectuais que os usuários consomem, mas também nos próprios hábitos de fruição cinematográfica. Quando se discute um suposto “progressismo correto”, muitas vezes a inclusão de debates artísticos em torno de produções realizadas por minorias — especialmente aquelas que vivem e sobrevivem de seu trabalho artístico nas margens — é vista com desdém ou tratada com condescendência. Seja no elogio ou na crítica, inexiste um esforço consistente para ler, traduzir ou, ao menos, dialogar com produções críticas feitas por mulheres, pessoas LGBTQIA+ e outros grupos historicamente marginalizados.
Mesmo quando tais produções abordam os mesmos filmes que todos parecem querer resgatar incessantemente, o olhar dessas vozes dissidentes poderia, ao menos, oferecer perspectivas novas. Entretanto, o que se observa é a repetição exaustiva de análises previsíveis, quase sempre calcadas nos mesmos pontos de vista já naturalizados. Resta a dúvida: será este, de fato, o caminho mais enriquecedor para a crítica artística?
Quando menciono a necessidade de novas propostas para o debate sobre cinema, refiro-me, de fato, ao esforço genuíno de ao menos tentar propor ideias inéditas. Trata-se de utilizar as próprias referências não como um mero exercício de repetição, mas como ponto de partida para um resgate que resulte em algo realmente novo. Não se trata de apenas reiterar, incessantemente, o que já foi discutido, escrito ou até mesmo traduzido inúmeras vezes. Há, inclusive, uma tendência curiosa: traduzir textos que já circulam amplamente dentro dos mesmos circuitos e que, de certa forma, apenas reforçam as discussões já saturadas.
O que se propõe aqui é um movimento de busca por outros referenciais, por discursos ainda não exauridos, que apresentem novas abordagens e perspectivas. Reforço que isso não implica, necessariamente, um alinhamento ou concordância irrestrita com tais ideias. Pelo contrário: a própria defesa de uma perspectiva dialética, tão valorizada por muitos que se consideram participantes ativos desse campo de discussão, pressupõe justamente o embate de discordâncias e a construção de sentido a partir dessas divergências. Sendo assim, por que então insistir na repetição de discursos? Por que criar publicações inteiras pautadas por conteúdos que já são exaustivamente debatidos nas redes diariamente? Por que não ousar, ao menos uma vez, buscar um novo horizonte para esse debate?
Diante disso, permanecemos em um ciclo de repetição, no qual o desprezo pela produção cinematográfica contemporânea é tão automático e generalizado quanto a aceitação incondicional de qualquer obra que dialogue com causas progressistas. Novamente, inexiste autocrítica. A performance se torna o caminho mais confortável, sendo, inclusive, uma forma de oportunismo dentro desse dito “debate artístico”.
Para concluir, volto novamente à frase de Godard: “Cultura é regra, arte é exceção.” O problema é que, hoje, até a exceção virou uma nova regra.
Por fim, retomo a reflexão sobre os problemas da padronização e da instrumentalização do gosto. São, evidentemente, questões fundamentais. Contudo, debates sobre os meios de produção cinematográfica, a distribuição de filmes e, sobretudo, o cinema enquanto campo de trabalho são praticamente inexistentes. Infelizmente, textos como este — e muitos outros que circulam nas redes sociais — têm vida curta, com validade quase efêmera. No entanto, estou em paz com isso. Não me proponho a ser um revolucionário que alcançou a tão almejada erudição da alma estética, mas que, nesse processo, deixou de existir enquanto sujeito pensante.
Texto muito bom e pertinente no momento. Estamos questionando e sendo críticos ou apenas participando das dinâmicas já conhecidas das redes sociais? Bons questionamentos nesse texto